MST: Clubes e Selecção
Veja-se o caso de Benni McCarthy, por cujos serviços o FC Porto tanto lutou no passado e continua a lutar no presente, tendo de arrostar todos os meses com manobras destinadas a desviá-lo do clube, a preço de ocasião: dia 15 de Agosto parte ao serviço da Selecção da África do Sul, pela qual disputa um jogo particular a 17, regressando ao Porto a 18, mas lesionado; em tratamento médico, falha a primeira jornada do campeonato a 21 e a segunda a 26; é dado como recuperado a 28 e volta a partir para o serviço da Selecção sul-africana, pela qual disputará dois jogos, regressando, em princípio ao Porto a 7 de Setembro. Ou seja, e caso não volte outra vez lesionado,McCarthy terá estado três semanas indisponível para o FC Porto — ou ao serviço da sua selecção ou lesionado ao serviço dela. Durante quase um mês o FC Porto pagou-lhe o ordenado, recuperou-o das lesões e treinou-o para o serviço de outrem.
O exemplo de McCarthy vem a propósito do caso recente de Nuno Valente, a propósito do qual tantos comentadores bateram forte e feio na Direcção portista — sem que, contudo, alguém tenha antes curado de ouvir as razões desta. Pois, eu vou também dizer o que penso, agora que o caso está encerrado com a partida de Nuno Valente para o Everton. E aviso desde já que aquilo que vou dizer é muito politicamente incorrecto.
Antes de mais, quero explicar que não sofro dos afrontamentos patrioteiros desencadeados pela Selecção Nacional. Não faço parte do número dos inúmeros portugueses que, a toque de caixa do seleccionador, andaram semanas a exibir patriotismo, com bandeirinhas às janelas, nos carros ou na roupa. O exibicionismo patrioteiro, seja português, francês ou americano, sempre me irritou, acredito que o orgulho e a devoção à Pátria se devem exprimir de outras formas e com outros pretextos.
Em segundo lugar, devo igualmente confessar que, desde que comecei a perceber a natureza, os métodos e a personalidade do seleccionador, a sua jamais perdoável atitude de déspota para com Vítor Baía (até hoje, não teve sequer a coragem de se explicar), o destino da Selecção Nacional de Scolari deixou de me interessar por aí além. Entendo que ela é muito mais a Selecção de Scolari do que a Selecção de Portugal — e basta esta última convocatória para o confirmar (dois guarda-redes, ambos suplentes nas respectivas equipas; jogadores em clara baixa de forma, como Petit, Simão, Figo, Postiga; jogadores que ele não faz ideia como é que estejam, casos de Costinha ou Nuno Valente). Enfim, a tradicional escolha pela lei do menor esforço e pelos «direitos adquiridos».
Em terceiro lugar, esta Selecção de Scolari joga um futebol, a meu ver, mau e soporífero: na Superliga não ficaria nos lugares europeus. Reconheço, contudo, que o seleccionador é das pessoas com mais sorte que eu já vi, um excelente relações públicas quando lhe convém, e um comendador de mérito da República, que o fez Jorge Sampaio, porque cometeu a proeza de ter ficado em segundo lugar no Europeu, depois de duas vitórias, um empate e duas derrotas — o que a mim me pareceu fraca prestação para tanto investimento nacional e tão propícias condições, mas já se sabe que Jorge Sampaio se comove com pouco e condecora a torto e a direito tudo o que lhe cheira a artista popular.
Este intróito para dizer, portanto, que também do ponto de vista da Direcção do FC Porto, ou do sentimento de um portista, esta Selecção Nacional de um seleccionador que tudo tem feito para enfrentar, desafiar e menosprezar o FC Porto, é uma selecção que, a nós, nos inspira muito pouco instinto patriótico.
Escrevendo aqui, na sexta-feira passada, sobre o caso Nuno Valente, António de Sousa concluía que «o FC Porto perde em toda a linha: desperdiça um jogador de qualidade, vê a sua posição criticada violentamente e confronta-se com nova provocação do seleccionador nacional». Ora, salvo o devido respeito, eu discordo em toda a linha: o «jogador de qualidade» está em fim de carreira, vem de uma grave lesão e, segundo o departamento médico portista, não aguentaria a acumulação de jogos entre o clube e a Selecção. É duvidoso que conquistasse o lugar a Leandro e é certo que, neste momento, não o conquistaria a César Peixoto. Enfim, não foi propriamente desperdiçado, mas sim vendido por dois milhões de euros a um clube onde ele poderá mostrar o seu valor e reservar lugar cativo na equipa de Scolari. As «violentas críticas» são coisa que, de tão repetidas, com um pretexto ou outro, já não aquecem nem arrefecem qualquer portista». E, quanto a ter-se posto a jeito para «nova provocação» do seleccionador, acho extraordinário que se critique, não o provocador,mas sim o provocado. Ou seja, reconhecendo que Scolari tem como divertimento habitual «provocar» o FC Porto, o articulista acha que o que o FC Porto deve fazer é não dar pretexto algum para «novas provocações ».O homem bate e a gente devia-se encolher. Talvez por patriotismo...
O caso Nuno Valente, se visto com equidistância das duas posições que estiveram em confronto, é um caso difícil de resolver porque ambas as partes têm razão. E é isso que o torna um caso digno de meditação séria e não de fáceis tiradas demagógicas. No lugar do Nuno Valente, eu teria provavelmente a mesma posição que ele, porque a qualquer atleta é legítimo e só lhe fica bem querer representar o seu país. Mas, no lugar da Direcção do FC Porto eu teria provavelmente também a mesma posição que eles tiveram.
Num tempo em que todos vivem a apelar para o espírito profissional e empresarial das SAD do futebol, é impossível não reconhecer as razões atendíveis da Direcção portista, neste caso. Para aqueles que, como eu, defendem que os clubes devem ser auto-suficientes e auto-sustentáveis, sem viverem eternamente do favor político, do negócio com a autarquia ou do perdão dos impostos, é obrigatório exigir, por igual, que os clubes interiorizem o dever de prestar contas aos sócios, aos titulares de lugares cativos, aos patrocinadores, a quem os sustenta, da forma como geram o seu património. Um clube que não viva de favores públicos também não se pode portar como benemérito público. E é isso que alguns clubes são hoje em relação às Selecções Nacionais, em tais termos que eu acho que os clubes portugueses deviam ponderar seriamente se, por exemplo, compensa ter ao seu serviço jogadores que são convocados habituais para selecções estrangeiras.
Nuno Valente lesionou-se o ano passado ao serviço da Selecção portuguesa. Esteve sete meses afastado dos relvados, regressou a meio-gás e quando já a época estava resolvida. Durante todo esse tempo foi o FC Porto que lhe pagou o ordenado e a Segurança Social, tendo ainda tido necessidade de contratar para a sua vaga um outro jogador — Leandro — pelo qual pagou «passe» e ao qual teve e tem de pagar ordenado. Contas feitas, é provável que a sua lesão ao serviço da Selecção tenha custado ao clube mais do que aquilo por que ele foi agora vendido ao Everton. Pergunto qual é o outro ramo de actividade ou negócio em que uma empresa privada tenha de disponibilizar os seus efectivos ao serviço do Estado, continuando a suportar todos os encargos, como se o trabalhador estivesse ao seu serviço?
Ora, fazendo fé naquilo que constou, parece que o departamento médico do FC Porto — com ou sem razão — entendeu que Nuno Valente, por causa da lesão contraída o ano passado ao serviço da Selecção, não estava em condições de aguentar uma época inteira de sobrecarga de esforço, entre o clube e a Selecção. Ou seja, o clube poderia ver-se confrontado com nova situação igual à anterior e por cujos prejuízos o clube responderia na totalidade e a Federação com nada. Sendo assim, o que deveria fazer a SAD do clube? Negociar com a Federação, disseram alguns. Talvez, mas negociar como e com quem, se, indiferente a tudo, Scolari se limitou a aproveitar para «nova provocação», convocando o jogador, sem falar com a Direcção, o departamento médico ou o treinador do FC Porto?
É fácil falar de «deveres patrióticos ». Sobretudo, dos deveres dos outros. Mais difícil é reconhecer que as relações entre clubes e Selecções, aqui e lá fora, têm de ser objecto de reflexão e de revisão. Sob pena de os grandes clubes não poderem sustentar mais os grandes jogadores, face à sobrecarga de jogos oficiais das Selecções (agora até inventaram mais a Taça das Confederações) e dos inúmeros jogos particulares que se arranjam, em muitos casos apenas para financiar o nível de vida luxuoso de dirigentes federativos.