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quarta-feira, outubro 19, 2005

MST: Os três erros fatais de um teimoso

«1. Poucas vezes uma derrota com o Benfica, mesmo que no Porto, me causou tão pouco abalo como a de sábado passado. Primeiro que tudo porque eu troquei uma ida ao Dragão por um fabuloso fim-de-semana de caçada às perdizes, na zona beirã do Tejo Internacional. E, quando se está a caçar perdizes, entre amigos e naquela paisagem despojada e selvagem, tudo o resto toma uma importância relativa: como escreveu Shakespeare no Hamlet, com aplicação directa à paixão futebolística, «há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que a tua vã sabedoria supõe». Segundo, porque eu percebi, ao minuto zero do jogo e quando vi a equipa escalada por Adriaanse, que as coisas não iam correr bem, e logo me preparei para o pior; e percebi, por volta do minuto 20, que só o Benfica poderia ganhar aquele jogo. Em terceiro lugar, porque aquilo que verdadeiramente me faz sofrer é quando o FC Porto joga bem e perde, ou quando factores externos conduzem à derrota, sem mérito para o adversário. Mas, desta vez, nem a criteriosa escolha de Lucílio Baptista (just in case...) se revelou necessária: a defesa portista, as asneiras de Adriaanse e o mérito do Benfica foram mais que suficientes para um desfecho que se revelou perfeitamente natural. E, para que conste, justíssimo e sem contestação possível.


2. Mas, tomem nota, também: numa semana em que, como habitualmente, a minha estimulante colega de coluna, Leonor Pinhão, fez questão de relembrar acidentes passados da última vez que o Benfica ganhou no Porto, revelando que o seu presidente de então, Jorge de Brito, teve de sair do estádio de ambulância e disfarçado de doente (estaria mesmo disfarçado ou estaria mesmo doente?), desta vez os selvagens do Porto receberam o Benfica sem a mínima razão de reclamações, excepto as de má-fé. Parece que, no hotel onde a equipe lisboeta dormiu, dois petardos (e não «três ou quatro », como disse o presidente benfiquista) foram lançados na rua por energúmenos de passagem, que existem infelizmente em todas as cidades e todos os clubes. E nada mais. Nem as provocações lançadas em Gaia no próprio dia do jogo por Luís Filipe Vieira en contraram qualquer eco ou qualquer resposta de dirigentes ou gentes portistas, que se mantiveram alheios ao ambiente toda a semana e assim continuaram depois. Nem o aparato policial requisitado pelo Benfica para se deslocar ao estádio encontrou qualquer justificação no ambiente vivido. Os adeptos benfiquistas compraram todos os bilhetes a que tinham direito e não os 1008 que a direcção benfiquista quis instituir para os adeptos portistas na Luz. Viram o jogo tranquilamente e sem quaisquer incidentes, antes, durante ou depois, e festejaram pacificamente a vitória com os seus jogadores, mesmo apesar da atitude desafiadora de um tal José Veiga, que consegue a proeza de, tendo servido dois clubes rivais, ser igualmente detestado pelos adeptos de ambos. E, tal como anunciara previamente, o presidente do Benfica viu o jogo no camarote presidencial, sem direito a insultos, a cartazes ofensivos, a cânticos hostis ensaiados ou a conferências de imprensa improvisadas no final para o ofender pessoalmente. Para que conste, também. E para comparação futura.


3. Ronald Koeman derrotou Co Adriaanse em toda a linha e com laivos de maquiavelismo. Koeman estudou bem o FC Porto e montou uma estratégia para vencer. Adriaanse, tal como já sucedeu outras vezes esta época, deu ideia de não conhecer o adversário e limitou-se a mandar 11 lá para dentro e esperar até ao 0-2 que eles resolvessem o assunto a golpes vadios de inspiração.Depois de ver como um e outro encararam o jogo, não me admira que Koeman esteja a ganhar 7-0 nos confrontos com Adriaanse.

Mas não esperem de mim que, por causa de uma derrota, ainda que exemplar, venha desdizer tudo o que de bom já disse sobre Co Adriaanse. O meu lenço branco continua no bolso. E eu continuo a pensar que ele tem razão em privilegiar o jogo ofensivo — não apenas em teoria mas no concreto, atendendo aos jogadores que tem, para atacar e para defender. Continuo a pensar que ele tem razão em ser um disciplinador e muitas das suas ideias têm toda a lógica e fazem todo o sentido. Mas também não posso deixar de reforçar as críticas que já lhe fiz e cujo único erro de que me penitencio foi ter pensado que eram detalhes corrigíveis e afinal estarem-se a revelar problemas de fundo. Adriaanse é teimoso até ao absurdo, é autoritarista até ao ponto de isso prejudicar as suas boas ideias em matéria de disciplina e tem um excesso de autoconfiança e um défice de humildade que facilmente se transformam em autismo e arrogância, com evidente prejuízo da equipa. Dá que pensar e é matéria de séria preocupação que só o treinador não consiga ver o que qualquer um vê à vista desarmada. Os três erros fatais cometidos por Adriaanse no jogo contra o Benfica foram demasiado gritantes para serem desculpáveis e foram causa decisiva da derrota. Poucas vezes se poderá dizer com tamanha segurança que uma equipa foi derrotada pelos erros do seu treinador.

O primeiro erro fatal de Adriaanse foi, obviamente, a defesa. Talvez ele não tenha a culpa toda pelo facto de o FC Porto não ter um único grande central e jogar com dois laterais adaptados: ou seja, de não ter um único bom defesa de raiz. Mas, se prefere jogar com Bosingwa adaptado que com Sonkaya, por ele indicado para a função, então tem de explicar a Bosingwa o mínimo que é de esperar de um lateral — por exemplo, que, se o avançado contrário pode cabecear a bola para golo e ele está por ali, é de esperar que tente também cabecear a bola, em lugar de ficar a olhar. Depois, tem de dizer aos centrais que não podem subir os dois nos cantos, proporcionando contra-ataques como o que deu a vitória ao Artmedia e o que ia dando o 3-0 ao Benfica. E, finalmente, não pode, sob pena de suicídio continuado, insistir nos dois piores centrais dos cinco que tem ao seu dispor. Ricardo Costa já teve sobejas oportunidades para mostrar o que valia e já deu suficientes provas de que a sua vontade e a sua ambição não têm correspondência no seu valor. Quanto a Bruno Alves, esse só pode ser um caso evidente de erro na origem: se realmente tem talento para jogar futebol, de certeza que não é a defesa-central. E, depois daquela vergonhosa atitude para com Nuno Gomes, a questão é a de saber se pode voltar a ter lugar na equipa principal do FC Porto. Como quer que seja, os factos falam por si: esta dupla de centrais em que Adriaanse se fixou encaixou sete golos nos três jogos que fez, dois dos quais jogados em casa. Tremo só de pensar que lhe estará reservada a tarefa de amanhã enfrentar Adriano e companhia.

O segundo erro do homem que disse que não iria mudar nada por se tratar do Benfica foi ter mudado o que não devia e não ter mudado o que devia. Não mudou a defesa, que tão más provas vinha dando, e ela enterrou a equipa. Não deu descanso ao Lucho González, que grita desesperadamente por alguns dias de repouso, ao fim de um ano inteiro a jogar sem pausas, e que regressara 24 horas antes do Uruguai, depois de dois jogos e duas viagens intercontinentais em sete dias. Tirou o Diego, que estava a jogar bem, e meteu finalmente o Jorginho na sua verdadeira posição, só que tarde e a más horas, porque salta à vista que o Jorginho atravessa uma crise de forma a pedir banco urgente. E, finalmente, mexeu no ataque, que era a sua melhor defesa face à incompetência larvar da defesa, e, fazendo-o, quebrou as rotinas adquiridas, sem que a alternativa tivesse mostrado um mínimo de inspiração ou trabalho de casa.

O terceiro erro já é um clássico e um mimetismo típico de treinador português, que Co Adriaanse parece ter assimilado até ao âmago: quando o jogo é complicado olha-se para a lista de jogadores e tira-se o mais criativo deles, o desequilibrador nato, aquele que o adversário mais teme, a benefício da suposta consistência da equipa. Ganhei, infelizmente, duas apostas feitas com um amigo: uma, que Adriaanse iria deixar o Ricardo Quaresma de fora da equipa inicial; outra, que o meteria à pressa, assim que estivesse a perder, porque também isso é um clássico: os génios não servem para ganhar jogos, só servem para salvar jogos perdidos. Só não esperava é que a sua parcimónia fosse tamanha que, quando finalmente meteu o Quaresma em jogo, depois de longos minutos a dar-lhe instruções inúteis, já houvesse 2-0 e nada a fazer.

Eu sei que o mister Co Adriaanse, para além da sua teimosia flamenga, também não fala e não lê português, o que muito contribui para o autismo em que vive. Talvez seja altura de Pinto da Costa começar a aprender holandês, antes que, por delicadeza, como disse o Rimbaud, tudo esteja perdido.»

Miguel Sousa Tavares, in A Bola (18/10/2005)

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