MST: Desculpas
1 Como escreveu Vítor Serpa, aquele enxovalhante pedido de desculpas de Miguel resultou em prejuízo de todas as partes envolvidas: o próprio jogador, que sacrificou a honra a um contrato; os seus representantes, que se viram publicamente acusados de gananciosos e batoteiros pelo representado; e o presidente do Benfica, que, tendo provavelmente razão para exigir desculpas, não resistiu a levar a exigência a um ponto tão extremo que as desculpas soaram a falso e, em vez de reparação, obteve vingança — o que é feio e não abona a seu favor. Mas, sobre outro ponto de vista, todos saíram também a ganhar: Miguel, que conseguiu o que queria, que era ir-se embora com um contrato melhor; os seus representantes, que vão cobrar a respectiva comissão e honorários no negócio; e o Benfica, que se viu livre de um problema já sem solução e encaixou oito milhões de euros. Tudo depende da perspectiva que se tem na vida: os bons princípios ou o saldo bancário.
2 Para afirmar os seus princípios Mourinho foi à conta bancária de Ricardo Carvalho e aliviou-a em metade do ordenado: 125 mil euros. Ricardo, culpado de ter dito simplesmente que não entendia porque não estava a jogar no Chelsea, deve ter entrado assim para o Guinness como vítima do delito de opinião mais caro da história. Mas o castigo não ficou por aqui: ainda foi obrigado a assistir, sem poder abrir a boca em defesa própria, a um raspanete público de Mourinho, diante de todos os colegas. E, para a humilhação ser total, ainda teve de ouvir o assessor de Mourinho a declarar que ele necessitava de fazer um teste de inteligência. Há quem sustente — sem factos ou indícios que o sustentem — que o desabafo de Ricardo não era de todo inocente, que haveria por ali gato escondido. Mas eu também me lembro de quando Mourinho dizia que, no dia em que um jogador seu se conformasse em ser suplente, não teria lugar na equipa.
3 Outro Ricardo, outra situação insólita, talvez a justificar um pedido de desculpas — só não se sabe é de quem. Ricardo Quaresma há várias semanas que nem sequer faz parte do lote de convocados de Co Adriaanse. Não vale a pena dizer que se trata de uma simples opção táctica do treinador portista, porque toda a gente já percebeu que não é. Por opção táctica Ricardo Quaresma pode não ter lugar no onze inicial para um determinado jogo ou mesmo para todos. Mas não caber, por sistema, no lote dos 18 convocados para todos os jogos não é uma opção táctica, a menos que o treinador fosse totalmente incompetente. Ricardo Quaresma é apenas um miúdo, tímido e simples, que tem a sorte de ser dotado para o futebol e, pelos vistos, o azar de ser sobredotado. Em campo tem os defeitos inevitáveis da sua idade, da sua vontade de jogar e da sua cegueira táctica. Ele sente que pertence ao escassíssimo lote de jogadores capazes de resolver um jogo num golpe de génio (como tantas vezes o fez na época passada) e não resiste a tentá-lo várias vezes, não sabendo ainda que os golpes de génio não acontecem todos os dias. Se alguém lhe ensinar isso, se alguém lhe explicar que o seu génio deve estar, primeiro que tudo, ao serviço da equipa, não tenho dúvidas de que ele virá a ser um dos maiores futebolistas da sua geração. Ora, um treinador competente serve justamente para isso. Serve para pegar nesse diamante em estado indisciplinado tacticamente e ensiná-lo a ser útil, sem deixar de ser genial. Inversamente, pô-lo de castigo, afastá-lo liminarmente da equipa, recusar-lhe oportunidades, abater pisocologicamente um miúdo ainda sem sabedoria para se defender de uma situação destas, é o oposto daquilo que o clube tem o direito de esperar do seu treinador. Até porque, a continuarem as coisas assim, já se sabe como é que o filme vai acabar: em Dezembro jogador e clube entrarão num braço-de-ferro, cuja única saída é o clube abrir mão de um jogador com um potencial valiosíssimo, a preço de saldo. Já aqui o escrevi na semana passada, a propósito de Adriaanse, que não raras vezes existe um desfasamento entre aquilo que o senso comum observa e aquilo que um treinador de futebol parece observar. Na minha pessoalíssima opinião de simples pagante do espectáculo são jogadores como o Ricardo Quaresma que me levam aos jogos e não jogadores como, por exemplo, um Hélder Postiga. Porque, embora eu também me irrite muitas vezes com a forma como o Quaresma se agarra à bola, eu dele espero sempre a contrapartida de um golpe de génio, enquanto do Postiga, que ele me perdoe, espero exactamente o mesmo que esperavam (e desesperavam) os 48.217 espectadores do Dragão, anteontem: ou seja, nada. Já deu para ver que Co Adriaanse é de ideias fixas. E já deu para ver, também, que isso irá trazer dissabores num futuro bem próximo. O futebol espectacular que a equipa começou por exibir nos jogos de pré-época vai-se dissolvendo aos poucos num futebol incaracterístico, onde o antigo e constante jogo de circulação é substituído por um jogo de bola em profundidade e incapacidade criativa do meio-campo. Porquê? Porque peças-chaves do sistema de jogo que ele concebeu estão a falhar e ele recusa-se a substitui-las ou a rever o que quer que seja. Lucho está de rastos, Raul Meireles parece ter perdido a inspiração dos primeiros jogos, Jorginho continua dramaticamente afastado da sua posição natural ao centro e deslocado para uma ponta, McCarthy está lesionado, não há flanqueadores a titulares (Quaresma, Ivanildo, Alan) e Hélder Postiga, como n.º 10 ou como n.º 9, não resulta. É exactamente para situações como esta que há 28 jogadores na equipa. Mas, se quem joga mal tem lugar cativo, que estímulo terão os outros para se esforçar nos treinos ou quando episodicamente são chamados a jogar uns minutos?
4 O negócio que Santana Lopes fez quando era presidente da câmara de Lisboa, e destinado a co-financiar os estádios de Benfica e Sporting, continha uma última concessão verdadeiramente de pasmar. A CML, através da EPUL (uma empresa municipal, que urbaniza terrenos públicos para supostamente vender habitação mais barata), iria construir duas novas urbanizações que, uma vez vendidas, gerariam lucros a dividir entre a EPUL e o Benfica e Sporting. Ou seja, a câmara de Lisboa pegava em terrenos públicos, construía neles com dinheiros públicos, comercializava-os e depois, se lucros houvesse, dava metade deles ao clubes, que não tinham mexido uma palha nem arriscado um tostão. Tratava-se, obviamente, de uma doação encapotada sob a forma de participação em negócio. Mas eis que agora se vem a saber, através da divulgação das contas da EPUL, que também a condição a que estava sujeito o negócio foi afinal ignorada. Antes mesmo de se iniciar a construção, de haver quaisquer vendas e muito menos resultados do negócio, a EPUL adiantou ao Benfica e Sporting, em Dezembro passado, 20 milhões de euros «por conta dos lucros futuros». Só que não apenas os especialistas contestam esse volume de lucros putativos como até duvidam que, por falta de condições legais para construir, as urbanizações em causa cheguem sequer a ver a luz do dia. Entretanto, para poder antecipar os hipotéticos lucros ao Benfica e Sporting, a EPUL foi à banca pedir um empréstimo — cujos juros, obviamente, lhe caberá também pagar. Ó senhores, que tanto se ofenderam porque um inspector do IGAT mais o sr. Rui Rio entenderam, ao arrepio de vários outros, que parte dos terrenos do FC Porto, expropriados para o Plano de Pormenor das Antas, teriam sido sobreavaliados: o que têm a dizer agora deste negócio?
5 E os grandes arautos da prosperidade que o Euro-2004 iria trazer a Portugal, os loucos que ainda sonham com os Jogos Olímpicos, a OTA e o TGV para todo o lado, o que têm a dizer à reportagem saída esta semana na Visão, sobre a situação de endividamento «para as próximas duas décadas» das câmaras municipais que se lançaram na aventura dos estádios para o Euro e da total inviabilidade económica de todos esses estádios?