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quarta-feira, dezembro 21, 2005

MST: Uma questão de «timing»

«1. Há várias semanas que Luís Norton de Matos tinha previsto que a crise de desintegração iria ocorrer no Vitória de Setúbal. Há dois meses que a sua demissão estava por um fio. Aconteceu agora, após uma derrota que indicia, talvez, o fim de um ciclo lindo mas que não tinha sustentação. Depois de o primeiro jogador já ter abandonado o barco e quando se prefigura a debandada em série. E a três dias do Vitória-Benfica.

Foi pena. Luís Norton de Matos, ex-jogador do Benfica, ex-treinador do terceiro classificado do campeonato, ex-garante da unidade do grupo contra a irresponsabilidade dos dirigentes, deveria ter esperado mais uns dias, ter segurado os jogadores ainda mais um pouco, ter-se despedido em beleza, mostrando contra o Benfica o mesmo espírito de luta e brio que o levou, por exemplo, a roubar dois pontos no Dragão, defendendo o 0-0 com tanto empenho e tenacidade que disso parecia depender o pagamento dos salários em atraso logo após o jogo. Ou então, se já não dava mesmo para segurar mais um dia que fosse o barco, deveria ter-se demitido 48 horas antes—e não depois da derrota no Funchal, de os jogadores terem começado a abandonar e de se chegar às vésperas do jogo com o Benfica. À parte a questão do timing da demissão do treinador; a crise do Vitória de Setúbal é exemplar de várias coisas, a saber: a mentira funcional em que vive o chamado futebol profissional em Portugal, mentira devidamente coberta e incentivada por uma Liga de clubes que se habituou a preferir a batota com o Fisco, a Segurança Social e os salários dos jogadores a uma reforma radical, cuja necessidade e contornos são hoje evidentes e consensuais para todos menos para aqueles que tinham obrigação de ser os primeiros a ver e a agir; exemplar da face oculta do futebol profissional português, muito mais comum do que se imagina e muito mais incontrolável do que se supõe (quando há jogos da Liga assistidos por 900 espectadores, podem crer que a tempestade apenas acabou de começar); e exemplar, finalmente, da natureza dos dirigentes do futebol português, regra geral chicos-espertos em busca de protagonismo e acreditação social, que acham que a gestão de um clube profissional se limita ao acto de comprar e vender jogadores no defeso e despedir treinadores quando os seus brilhantes negócios não dão os resultados esperados. No caso do Vitória, é evidente que se chegou ao extremo absoluto — este Chumbita vai ficar para a história dos malfeitores do futebol português — mas o que não falta por aí é Chumbitas de ocasião a alimentar amentira em que vivemos. O exemplo contrário e louvável é o de João Nabeiro, presidente do Campomaiorense: sonhou em trazer o Alentejo de volta ao futebol de primeira e, do nada, ergueu um clube dotado de estruturas, de um belo campo e de regras de seriedade. Mas, quando percebeu que não havia público nem mercado que sustentasse o seu sonho, pagou as dívidas e fechou a porta, em lugar de continuar a tentar alimentar a mentira em negócios imobiliários com a autarquia ou em poupanças nos salários a pagar.

2. Em Agosto e Setembro, quando Co Adriaanse mostrou não contar com Quaresma para a sua equipa habitual e quando já se falava na inevitável venda do jogador em Janeiro, escrevi aqui por três vezes que o afastamento de Ricardo Quaresma seria um acto de uma extrema irresponsabilidade e ignorância, pois que ele era, de longe, o melhor património desportivo do actual FC Porto. A generalidade dos comentadores, porém, dava razão a Adriaanse, argumentando que Quaresma era um indisciplinado, um individualista e um mau jogador de equipa. Contra-argumentei que ele era um miúdo e um génio: aos miúdos podem-se corrigir os defeitos e a missão de um treinador é essa e não a de os afastar liminarmente; e aos génios deve-se permitir a dose suficiente de individualismo que eles usam para fazer a diferença e resolver tantas vezes os jogos — como aliás o Quaresma mostrou na época passada e na Selecção de esperanças. Em Outubro Adriaanse decidiu-se a meter o Quaresma no quarto de hora final de dois jogos consecutivos e ele resolveu-lhe os dois jogos: logo houve quem, esclarecidamente, viesse dizer que o Quaresma só servia para os últimos minutos. Mas o génio estava lá e mesmo Adriaanse não teve como evitar experimentá-lo mais do que, por exemplo... o Hélder Postiga. Hoje o resultado é evidente por si: o Ricardo Quaresma transformou-se não só no melhor jogador do FC Porto, não só no melhor jogador português da actualidade, mas no mais promissor e entusiasmante jogador europeu do momento. Dizem os que ontem achavam que ele não tinha lugar na equipa que o mérito foi de Adriaanse, que, através de um notável (e fulgurante) trabalho psicológico, o transformou em jogador de equipa. Gostava de saber em que língua terá sido levado a cabo esse revolucionário trabalho psicológico: no inglês sem vocabulário de Adriaanse, que o Quaresma deve entender perfeitamente? Não. O mérito não se deve a Adriaanse, deve-se ao próprio Ricardo Quaresma, que gosta tanto de jogar que até fez o favor de passar a vir atrás defender, percebendo que esse era o preço do bilhete para a titularidade. E que teve o talento e a sorte de resolver aqueles dois jogos nos 10 minutos de cada umdeles que lhe foram concedidos: de outro modo, estaria agora na equipa B. De resto, limitou-se a continuar a dar asas ao seu génio e ele impôs-se por si. Todavia, há um mérito que reconheço a Adriaanse e foi já salientado por José Manuel Ribeiro, nas páginas de O Jogo: foi ter trocado o flanco a Quaresma, passando-o da direita para a esquerda, embora por vezes, e bem, com alternâncias. Não é a primeira vez que um destro é colocado como ponta-esquerda, hoje uma moda corrente (Simão Sabrosa é um bom exemplo). Mas Ricardo Quaresma está a revolucionar a moda e a função, porque não se limita a executar bem o movimento de sair da esquerda para o centro, como se espera de todos os destros actuando sobre a ponta esquerda. Ele consegue também cruzar com os dois pés, consegue fintar para dentro e para fora, mas sobretudo consegue aquele cruzamento exterior executado com o pé direito, a que chamam de trivela, e que é qualquer coisa de absolutamente novo e inesperado que, como ainda este sábado se viu, é capaz de abrir por completo uma defesa.

Espero bem que o prazer e a fome que ele tem de futebol sejam sempre suficientes para o manter longe do deslumbramento e dos tiques de vedeta que, por exemplo, já são hoje imagem de marca de Cristiano Ronaldo. O Barcelona há-de lamentar muito tê-lo deixado sair no negócio do Deco.

3. Jorge Sousa teve uma arbitragem infeliz, que valeu dois pontos ao Benfica, no jogo contra o Nacional. Foi infeliz na falta que deu o golo, e que certamente não viu, mas foi mais infeliz ainda na duplicidade de critério disciplinar, essa sempre mais difícil de perceber. Mas seguramente que não está em perigo de jarra: não deve fazer parte da lista negra do senador Veiga.

4. Subitamente, Maciel tornou-se o jogador indispensável do União de Leiria. Alguém me sabe dizer quantos golos leva marcados o Maciel e porquê ele é assim tão indispensável? A semana passada tive ocasião de explicar por que razão, ao arrepio do politicamente correcto, sou a favor dos acordos de cavalheiros sobre os jogadores emprestados. Mas a verdade é que estão proibidos pelo art.º 22 do Regulamento Disciplinar da Liga e punidos com uma multa pecuniária, que deve ser aplicada ao FCPorto e ao União de Leiria.

Custou-me um bocado a perceber, todavia, porque estaria o Benfica tão interessado em que o FC Porto fosse multado, ao ponto de ir fazer queixa à Liga. Mas depois li um delirante artigo pseudo-jurídico onde se explicava que à situação descrita no art.º 22 se deveria aplicar, não a sanção aí prevista, mas sim a do art.º 54, salvo erro, que contempla o caso de resultados combinados entre as duas equipas, nomeadamente através da utilização por uma delas de um onze «notavelmente inferior» ao habitual. Essa sanção seria a de derrota ou três pontos perdidos — que os autores do parecer transformaram em três pontos a menos para o União de Leiria e seis para o FC Porto (os três da vitória, que eram perdidos, e mais três da pena). Justamente a diferença actual entre o FC Porto e o Benfica. Aí percebi tudo.»

Miguel Sousa Tavares, in A Bola (20/12/2005)

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