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quarta-feira, fevereiro 01, 2006

MST: À deriva

«1. Infelizmente os vândalos de que fala a direcção do FC Porto existem. Existem em todas as áreas, existem no futebol e existem em todos os clubes. Podem atacar em Touriz ou em Vila do Conde, à facada ou à pedrada. O que os torna particularmente notados no futebol é que o futebol é um movimento de multidões e as multidões são cobardes e primárias. Cada vez são menos os que, por maior que seja a sua paixão clubista, até mesmo irracional, não cedem ao ódio, à bestialidade ou à ordinarice. Os que preferem o espectáculo ao resultado, o relvado aos bastidores, o seu clube honrado do que o seu clube vencedor.

Os assaltantes do treinador portista Co Adriaanse, anteontem em Vila do Conde, fazem parte do número daqueles que deveriam ser para sempre banidos do futebol — ou do que eles imaginam que o futebol seja. Além do mais desonraram o FC Porto e criaram um incidente que vem retirar força ao sentimento com que hoje se identifica uma larga maioria de adeptos.

Numa sociedade civilizada e democrática, de homens livres e não de cobardes, há outra maneira de discordar ou de emitir as suas opiniões: é dizê-las tranquilamente, sem ofensas nem insultos, e depois assinar por baixo.

2. Co Adriaanse transformou-se no problema central do FC Porto, num factor de divisão entre direcção e adeptos e num motivo de irritação surda e crescente que acabará por afastar os portistas do Dragão. Por ele e pelo que aconteceu antes dele.

Há pouco mais de ano e meio o FC Porto encerrava a época de 2003/04 talvez como a melhor época da sua vida: campeão europeu em título, admirado pelo mundo inteiro, com um estádio novo espectacular, uma situação financeira que lhe teria permitido o gesto impensável de pôr o passivo a zeros e recomeçar aos poucos a reconstruir uma grande equipa. Se tivesse saído na altura Pinto da Costa teria tido direito a uma estátua de fazer inveja ao defunto Kim Il-sung. Mas preferiu ficar e continuar, chamando a si, como é normal, a responsabilidade da sucessão de Mourinho e de provar que os êxitos não se deveram exclusivamente ao treinador. Um ano e meio depois o balanço é devastador: viu-se envolvido, mal ou bem, na provação do Apito Dourado, viu o clube incapaz, na época seguinte, de defender com brio o título europeu e de nem sequer ser capaz de conquistar o título nacional mais fácil das últimas décadas, tendo visto este ano a equipa nem ao menos garantir o terceiro lugar na fase de grupos da Liga dos Campeões. No novo estádio, onde Mourinho só consentira um empate com o Corunha, viu o FC Porto perder com o Benfica, o Sp. Braga, o Boavista, o Artmedia, etc., não esquecendo os 4-0 do Nacional. Já vai no quarto treinador experimentado e em cerca de 30 novos jogadores contratados em duas épocas e, logicamente, com tal política, e apesar dos larguíssimos milhões recolhidos em transferências irrepetíveis, viu as contas regressarem ao vermelho e tem hoje uma equipa mais cara que a que foi campeã da Europa. O que resta de positivo? Vai à frente do campeonato, com quatro pontos de avanço. Pois sim, mas...

Para começar, não é grande proeza ir à frente do campeonato. O campeonato é o que resta, depois da indecente despedida prematura da Europa, pela primeira vez em 12 anos e com os consequentes prejuízos financeiros. Depois, é o mínimo exigível a quem tem um orçamento para o futebol que é 50% superior a um dos rivais e 100% superior ao do outro. Além de que é uma liderança que tem tudo para ser provisória. Empatou em casa com o Sporting e perdeu com o Benfica — o que terá consequências em caso de desempate. E, das quatro deslocações a Lisboa, já perdeu a primeira e faltam-lhe as mais difíceis. Enfim, e sobretudo, tem um problema chamado Co Adriaanse, em quem neste momento ninguém é capaz de apostar um chavo sobre a sua capacidade de levar a equipa ao título e de regresso à lista dos grandes da Europa.

De início, como se recordarão os meus leitores habituais, fiquei entusiasmado com o futebol exibido pela equipa treinada por Adriaanse: o jogo era espectacular, era aberto, ofensivo, entusiasmante. A única dúvida que manifestei era a de saber se a equipa conseguiria manter aquele ritmo ao longo da época e se acumularia o espectáculo com os resultados, visto que a defesa me parecia bem vulnerável. O resto foram dúvidas pontuais: se o Postiga seria mesmo um número 10 e se não haveria melhor ocupação para o Quaresma que o banco de suplentes. Mas, no essencial, dei a Adriaanse bem mais que o benefício da dúvida. Comecei a oscilar na minha crença depois das derrotas na Liga dos Campeões — com o Rangers, com o Artmedia e com o Inter — , todas elas com uma flagrante dose de responsabilidade por parte do treinador. E mudei de campo de vez quando vi a forma quase científica como ele preparou a derrota com o Benfica. Depois disso, e tal como o grosso dos adeptos e a totalidade dos observadores, limitei-me a ir constatando o total desnorte para que caminhava Adriaanse. Desnorte na forma desastrada e desrespeitosa com que trata jogadores que são símbolos do clube e que lhe deveriam ser essenciais na gestão humana da equipa; desnorte na forma como insiste semanas a fio em jogadores sem capacidade para a primeira equipa, para depois, sem aviso algum, os votar ao total esquecimento; desnorte na forma como tira da equipa, sem justificação compreensível, jogadores que acabaram de fazer um grande jogo e, inversamente, insiste noutros que ninguém percebe porque lá estão; desnorte na preparação dos jogos mais complicados, em que parece nunca saber o que esperar do adversário; desnorte, enfim, no sistema de jogo, que já foi 4x3x3, 4x2x4, 3x4x3 ou 3x3x4. Se alguma palavra pode definir este percurso errático de Co Adriaanse nestes sete meses que leva à frente do FC Porto, é essa: desnorte. Ninguém sabe para onde vai, ninguém sabe se ele sabe para onde vai.

Entretanto, desmantelou por completo a equipa campeã da Europa (não resta um único a titular!), transformou aquilo numa escola de samba com dois argentinos para disfarçar, não consegue mostrar nenhum estilo de jogo nem jogadas rotinadas no ataque ou nas bolas paradas (e só faz treinos à porta fechada!) e, por mais avançados com que jogue ou que experimente, vive miseravelmente dependente da inspiração de Ricardo Quaresma para conseguir chegar a uns golitos de vez em quando. Quanto ao futebol-espectáculo do início da época, bom, só resta mesmo a breve memória de uma coisa que se tornou confrangedora. Pelo que Pinto da Costa tem aqui um sério problema, agravado, ainda por cima, por aquela sua bravata de ter prorrogado o contrato de Adriaanse antes que ele tivesse dado provas de competência. Agora, despedi-lo e aos seus é coisa para custar uns dois ou três milhões de euros—além do reconhecimento público de que, pela quarta vez consecutiva, se voltou a enganar na principal das suas atribuições. Não o despedir é assistir conformado a episódios como o do Jorge Costa e o do Baía (e tentar desviar as atenções com ridículos episódios de desprestigiante guerrilha com José Veiga), é ver talentos em crescimento a serem desperdiçados, mais e mais jogadores a serem contratados, na esperança vã de fazer daquele agrupamento um arremedo de equipa ganhadora, e ter de assobiar para o ar para também ele fingir que não vê os lenços brancos que vão varrendo o coração dos adeptos... antes que, em lugar de lenços brancos, haja cada vez mais e mais lugares desertos nas bancadas do Dragão.
No lugar de Pinto da Costa, tudo ponderado, eu sei o que fazia: despedia-o. Porque já deu para ver que não vale a pena esperar por um milagre. Co Adriaanse simplesmente não serve para o lugar.

3. Também na Luz, este fim-de-semana, se escreveu um capítulo desta mesma história: a arrogância só é perdoável quando é sustentada no mérito por todos reconhecido. De outro modo é apenas a jactância dos que se imaginam grandes (e não me refiro a Ronald Koeman, um senhor, tanto nas vitórias como nas derrotas).»

Miguel Sousa Tavares, in A Bola (31/01/2006)

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