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quarta-feira, janeiro 18, 2006

MST: Coisas que acontecem

«1. Sempre me bati contra uma escola estabelecida na crítica futebolística portuguesa e que consiste em embandeirar em arco de cada vez que um pequeno bate o pé a um grande, independentemente da forma como o consegue. Ora, eu também sempre gostei de ver o David vencer o Golias, mas é preciso que a luta seja leal e não com aspectos de emboscada. Além do mais, e no que ao futebol diz respeito, já não vivemos no tempo em que uns eram profissionais e os outros só tinham direito a uma sanduíche e uma laranjada. Hoje são todos profissionais, os métodos de treino são conhecidos e copiados e em aspectos determinantes, como a condição física (que, acima de tudo, depende do trabalho e do sofrimento), nada justifica que um pequeno seja mais fraco que um grande — até porque normalmente têm muito menos jogos disputados e muito menos cansaço e stress acumulados. Se hoje ainda fosse assim uma coisa tão extraordinária ver um pequeno a vencer um grande não faria sentido algum termos um campeonato com 18 equipas. Mas a generalidade da nossa crítica não pensa assim: olha apenas para o resultado e delira de cada vez que o David empata ou vence o Golias — sobretudo se, no papel de Golias, estiver o FC Porto. O jogo de anteontem na Reboleira foi um bom exemplo disto. A forma como o Estrela derrotou o FC Porto e a forma entusiástica como a crítica saudou esse triunfo são o espelho fiel de uma certa crítica que, a meu ver, transforma em motivo de celebração coisas que caracterizam um futebol subdesenvolvido. Em países de futebol adulto, como a Inglaterra, seria impossível lerem-se críticas como aqui se leram a propósito deste jogo. E, desde logo, porque lá o fundamental é a qualidade do espectáculo e a igualdade de armas. Um campo como o da Reboleira — com dimensões mínimas, relva tipo chapa ondulada, sem espaço nas laterais sequer para marcar um canto em condições — só pode assegurar um mau espectáculo de futebol, porque necessariamente a técnica individual e o aproveitamento dos espaços, que são o bonito do futebol, ficam desde logo anulados. E, assim sendo, é falacioso dizer-se que uma equipa como a do FC Porto é favorita à partida num campo como o da Reboleira. Não é: se as suas principais armas, que caracterizam a tal superioridade teórica, estão anuladas ab inicio pelas condições físicas do terreno de jogo, não pode ser favorita. Pelo contrário, entra em desvantagem, porque vai ter de aprender do zero os truques que aquele terreno impõe e o adversário conhece bem. Mas não foi apenas isso que aconteceu na Reboleira. Aconteceu também que houve uma equipa cheia de sorte e outra sem sorte alguma. Não quero com isto tirar o mérito aos jogadores do Estrela, que viram o seu esforço compensado no final. Mas acho que a vitória já foi prémio mais que suficiente para esse esforço; quererem ainda vê-la reconhecida como justa é demasiado e não o justificaram. Vejamos. Desde logo, o Estrela beneficiou de uma coisa de que não teve culpa nem mérito, que foi o regresso de Adriaanse à sua obsessão com o Jorginho, preferindo jogar sem ponta-de-lança só para, uma vez mais, dar uma oportunidade a esse seu protegido, esse fantasma do Jorginho de Setúbal, que vagueia em campo, perdido, descrente, negligente, abúlico, totalmente inútil. Depois, como sucede frequentemente com o FC Porto, no primeiro remate que fez à baliza o Estrela marcou — de livre, que não foi nada evidente, e aproveitando um ressalto na barreira, que mudou por completo a trajectória da bola e apanhou Baía ainda a colocar a barreira. Como se não fosse suficiente, no segundo remate, zás, o Estrela faz o segundo golo — um remate inofensivo que, graças a um ligeiro desvio no lamaçal à frente da baliza, traiu outra vez Baía. Um golo na própria baliza, o outro marcado pelo relvado. A seguir foi um porradão cirúrgico no Quaresma, obrigando-o, como já sucedera em Guimarães, a ficar na cabina ao intervalo (será que temos de lançar a campanha «deixem jogar o Quaresma!»?). Na segunda parte nem sequer se pode falar em domínio do FC Porto e contra ataques do Estrela. O que se viu foi um massacre consumado em 20 metros de campo. O Estrela foi uma única vez à área do FC Porto e jogou largos períodos, não com 11 atrás da linha do meio-campo ou sequer atrás da linha da bola: jogou com 11 dentro da grande área. Escreveu José Manuel Freitas que o Estrela «soube defender muito bem a vantagem conquistada». Discordo completamente: a defesa do Estrela passou toda a segunda parte aos papéis, chutando a bola para onde estavam virados e, às vezes até, uns contra os outros, e o seu guarda-redes deu suficientes baldas para justificar quatro ou cinco golos sofridos. Mas há jogos assim: sucedem-se os milagres e a bola não entra. Veja-se a estatística de A BOLA: oito cantos para o FC Porto, três para o Estrela; dezassete remates para o FC Porto, sete para o Estrela; 21 faltas cometidas pelo FC Porto, 33 pelo Estrela. Imaginem que a estatística era ao contrário, que tinha sido o FC Porto a passar metade do jogo metido dentro da sua área e o Estrela a falhar golos, e que o resultado tinha sido o oposto: alguém teria escrito que a vitória do FC Porto era justa?

2. Desigual, desigual, é a competição entre o Benfica e a Académica: aí é que se tornou bem visível o que pode um grande e o que tem de aceitar um pequeno. Com o seu melhor avançado previamente seduzido pelo Benfica, a Académica teve de aceitar passivamente a sua deserção dos treinos e do próprio jogo contra o futuro patrão. Sem Marcel, a Académica foi à Luz para, nas palavras do seu presidente, ser vítima de um árbitro que foi «um verdadeiro artista a construir o resultado». E, destroçado com o que todos tínhamos acabado de ver, desabafou ele que «não é fácil lutar contra tantas forças. Parece que, em vez de procurar avançados, vale mais procurar as pessoas certas para construir os resultados». Mas no fim do jogo, segundo antecipavam os jornais, o homem teve de se sentar à mesa a negociar o Marcel com aqueles mesmos de quem se queixava. Eis a lei do mais forte no seu esplendor.»

Miguel Sousa Tavares, in A Bola (17/01/2006)

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