MST: Comecem depressa o mundial!
«1. Como já devem ter notado, gosto muito de futebol. Gosto do jogo, da sua lógica e estratégia, que combina o sentido de equipa com o talento individual, da escola de qualidades humanas que o futebol pode constituir pela vida fora. Gosto da paixão, do clubismo, das cores, dos jogadores excepcionais. E gosto de tudo no espectáculo de futebol: os estádios, as luzes, a relva, a estética, a coreografia, os sons e o ambiente. Só tenho pena, uma infinita pena, que os modernos estádios portugueses tenham posto fim àquelas fantásticas roulottes de sandes de entremeada e courato, vinho morangueiro e imperial, em benefício dos assépticos e estúpidos bares inspirados nessa sinistra invenção dos nosso tempos que são os McDonalds e afins.
Mas, para mim, o futebol é apenas isto: um grande jogo, um magnífico desporto e, por vezes, um deslumbrante espectáculo. E nada mais. Não é, nem será nunca, compensação para frustrações alheias à coisa em si, fonte de inspiração patriótica ou motivo de redenção nacional. Eu já adorava futebol quando o Estado Novo usava o futebol para nos distrair da miséria política e cultural em que vivíamos, tentando fazer-nos crer que, por termos aquela fabulosa equipa do Eusébio e seus pares de 66, só podíamos ser um grande país. Eu não irei, pois, pendurar a bandeira nacional na janela de minha casa ou do meu carro nem irei associar-me a imbecis manifestações de patrioteirismo ad hoc, a mando de um seleccionador brasileiro que se convenceu de que nos havia de transformar a todos em súbitos patriotas, à boleia da Selecção. E enjoo só de pensar que a cidadania patriótica vai dar pretexto e fornecer representação àquelas patéticas criaturas do jet-seis nacional para se vestirem com as cores da bandeira e jurarem o seu desvelo pela Selecção-pátria.
Tal como aprendi as ver as coisas, o patriotismo não é arvorar bandeirinhas nacionais às janelas quando do Europeu ou do Mundial. O patriotismo, para mim, é pagar impostos, ser útil à comunidade de alguma forma, servir o seu país, quando se tem ocasião para tal e sem esperar nada em troca. E os heróis nacionais não são os jogadores da Selecção, que nasceram com o talento para jogar futebol e, por isso, têm a honra e o privilégio (aliás, excelentemente pago, directa e indirectamente, através da publicidade e direitos de imagem), de representar Portugal num Mundial. Mais depressa vejo como heróis os amadores que se preparam anos a fio e às vezes a expensas suas, longe das multidões e do vedetismo, para representar Portugal nos Jogos Olímpicos. E perdoem-me a blasfémia mas, enquanto português, tenho infinitamente mais orgulho na Maria João Pires que no Cristiano Ronaldo e no António Damásio que no Luís Figo. Cada um é livre de definir a sua noção de pátria e de heróis nacionais. E esta é a minha.
2. O Verão das Selecções começou, entretanto, com a desfeita dos sub-21. Aqui para nós, tudo visto friamente, e apesar da brilhante campanha de qualificação, não creio que se possa falar de desilusão. Pelo que vi dos sub-21, pareceu-me que a equipa é apenas razoável e notoriamente mais fraca que a francesa e a sérvia, que nos derrotaram sem espinhas. Para além do mais, pareceu-me que só havia uma e uma única estratégia para tentar marcar golos e ganhar jogos: cruzamento de trivela do Quaresma e cabeceamento do Hugo Almeida. Isso tornou-se-me particularmente evidente quando o seleccionador Agostinho Oliveira quis explicar o fiasco com o sub-rendimento de Quaresma. Além de injusta, a observação não é verdadeira: se, contra a França, Quaresma acusou cansaço e esteve abaixo do normal, já contra a Sérvia-Montenegro fez três cruzamentos para golo, todos desperdiçados, e os dois remates mais perigosos da Selecção portuguesa, e contra a Alemanha foi dos mais esforçados em campo. Agora, um treinador que faz depender os bons resultados de golpes de génio de um ou dois jogadores é porque não sabe, por si, acrescentar valor à equipa.
3. Enquanto os sub-21 se despediam do Europeu em Guimarães, a Selecção principal começava a mostrar o resultado da sua preparação em Évora. Não deixa de causar alguma perplexidade constatar que, enquanto os nossos adversários de grupo na Alemanha escolheram jogos de preparação de grau elevado de dificuldade (Irão contra a Croácia, Angola contra a Argentina e México contra a França), Portugal optou por dois jogos de preparação contra duas selecções inexistentes no ranking das 100 mais: Cabo Verde e Luxemburgo. Mas, depois de ter visto o tiro de partida contra a selecção, a bem dizer inventada, de Cabo Verde, a escolha de Scolari revela-se bem prudente. Pergunto-me se, com o estado de preparação revelado (excepção feita a Pauleta), os nossos mundialistas teriam feito melhor que os sub-21 contra os sub-21 da França e da Sérvia... Assim, jogando contra selecções que garantem pouco dispêndio de energias e vitória garantida, pelo menos o moral das tropas mantém-se em alta e sempre se acrescentam mais duas vitórias ao currículo de Luiz Felipe Scolari. Depois, na Alemanha, se verá se a estratégia também foi tão boa como a escolha.
4. Vendo o jogo de Évora, outra coisa que me fez alguma espécie foi a própria decisão de realizar o jogo e o estágio da Selecção em Évora. Não tenho objecção alguma, antes pelo contrário, acho louvável que, sempre que possível, se leve a Selecção a estagiar e a jogar no interior, em especial no Alentejo, onde é tão raro ver futebol de primeira. Mas estamos nos finais de Maio, princípios de Junho, onde em Évora são frequentes temperaturas como a de sábado, de 35 graus à sombra. Isso não terá consequências negativas de ordem física na preparação da equipa? Os franceses, por exemplo, começaram por estagiar no frio dos Alpes, em altitude, enquanto nós escolhemos o inferno da planície alentejana — teremos sido nós que acertámos, apesar de se saber que na Alemanha não iremos encontrar temperaturas daquelas? Não sei, só sei que, no final do jogo contra Cabo Verde, os jogadores se confessaram muito cansados e o próprio treinador adjunto dormia, no banco ao lado de Scolari, vencido pelo calor (ou seria pela falta de calor do jogo?).
Mas a escolha de Évora para local de estágio também me levanta outra questão, esta do ponto de vista do contribuinte: com tantos locais disponíveis — Óbidos, Vale do Lobo (onde esteve a selecção inglesa), qualquer local do Algarve próximo do inútil Estádio do Algarve, Coimbra e numerosos outros locais prontos e disponíveis pelo País fora, incluindo os centros de treino de Sporting, FC Porto e Benfica — havia necessidade de ir para um sítio onde foi preciso construir um miniestádio de raiz? Sim, eu sei que aparentemente o novo Estádio de Évora foi financiado por particulares. Mas o que veio a público é que não se tratou de um gesto de beneméritos, antes de uma troca de oportunidades negociais: eles construíram o estádio e em troca vão poder urbanizar dentro da zona histórica de Évora, à revelia do respectivo PDM. Espero bem que isso não se confirme, porque seria um péssimo princípio que a presença da Selecção de Portugal fosse causa e pretexto de decisões desse tipo contra o interesse público.
5. Volto a reparar que Cristiano Ronaldo tem às vezes ataques de vedetismo que já ia sendo altura de ultrapassar. Aquele pontapé no adversário ter-lhe-ia valido um castigo sério em Inglaterra e poderia ter-lhe valido, sem a condescendência do árbitro, a ausência no primeiro jogo do Mundial. Scolari fez bem em tirá-lo de imediato mas agora terá de lhe explicar que o talento para jogar futebol e o estatuto de vedeta não dispensam algumas obrigações de outro género. Em especial quando se representa o País.»