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terça-feira, junho 13, 2006

MST: Gosto mais de sardinhas assadas

«1. O Mundial já vai no quarto dia e com alguns 12 jogos disputados, e tudo o que eu vi foi o Angola-Portugal, aliás um jogo profundamente aborrecido — se é que o Luís Figo permite que se diga isto. Um fim-de-semana a gritar por Algarve, vento sueste, praias semi desertas, o mercado do peixe de manhã, a sesta na rede à tarde, umas sardinhas assadas ao final do dia, noites de lua cheia, o último livro do Mário Cláudio para ler e um sono embalado pelo canto dos pássaros — enfim, os sinais do Verão por todos os lados — e como é que me haveria de dar para ficarem frente da televisão a ver um Inglaterra-Paraguai, um Suécia-Trindade e Tobago ou um Japão-Austrália? Amigos e conhecidos meus meteram férias agora, pediram ao médico amigo que lhes desse umas baixas criteriosas, invocando stress ou mal de viver, ou então, pura e simplesmente, declararam que iam hibernar por um mês, só para ficarem em casa diante do televisor a assistir ao Mundial, de fio a pavio. Mais sofisticados e mais in, outros compraram pacotes de Mundial, saindo de Lisboa de manhã para ir ver um jogo e regressando logo após ou no dia seguinte. Eu, não. Eu estou como o Vítor Baía: «A Alemanha não faz parte do meu roteiro de férias.» E, quanto à televisão, tudo bem, desde que os absurdos horários dos jogos não colidam com uma praia com vento sueste, umas sardinhas a morrer na brasa ou uma lua a deslizar pela frente da minha noite. Peço desculpa a todos os que andam de bandeira ao vento, a todas as criancinhas que se passeiam equipadas à Selecção Nacional, aos repórteres histriónicos da televisão que interrompem a emissão para gritar «alarme na Selecção! O Deco lesionou-se no treino desta tarde!», a todos os políticos em desfile pela Alemanha, mas o meu amor à Pátria e ao futebol tem limites. Afinal, tudo na vida é feito de escolhas. Aliás, venho constatando que, ano após ano, o futebol vai tendo cada vez menos capacidade de determinar as minhas escolhas. Este ano, por exemplo, falhei, quer no estádio, quer na televisão, jogos decisivos do meu clube, porque estava ocupado com coisas mais urgentes ou mais atraentes. Pouco festejei o título do FC Porto e foram mais as razões que me levaram a irritar-me com o futebol visto, ouvido e discutido, do que as que me levaram a agradecer-lhe momentos de puro prazer. Quantos jogos terei eu visto este ano que me encheram as medidas? Talvez uns três, não mais do que isso. Mas, quanto pior é o futebol que se vê, maior é a importância sempre crescente que ele tem. Maior é o protagonismo dos dirigentes, maior é a prosápia dos treinadores, maior é o vedetismo dos jogadores. Chega a um ponto em que só me apetece desabafar: «Basta! Trata-se apenas de saber dar chutos numa bola! Há uma quantidade de gente que faz coisas bem mais interessantes e importantes e que não tem nem um centésimo das atenções dispensadas aos do futebol.» No que ao Mundial diz respeito, eu continuo a achar que são equipas a mais, jogos a mais, tempo a mais. Não mais do que um quarto dos jogos tem verdadeiro interesse, e não mais do que um quinto acabam por ser grandes jogos de futebol. O resto é pura e dura promoção, que acaba por esmagar tudo à volta, como se não houvesse vida para além do Mundial. Eu sei que isto pode parecer estranho de escrever num jornal que, acima de tudo, se ocupa do futebol, mas acredito que, como em tudo o resto na vida, a quantidade mata a qualidade. O que é de mais torna-se banal e o que é banal torna-se desinteressante. Enfim, lá mais para diante, quando o Mundial já estiver limpo das Selecções apuradas segundo um critério politicamente correcto, hei-de, fatalmente, perder algumas horas a ver o que verdadeiramente interessa. Quando, além do mais, for lua de quarto minguante e o vento tiver virado a norte.

2. Não sei se distraídos pelo Mundial, se despertos para a realidade das suas situações financeiras, os clubes portugueses, e em particular os grandes, têm protagonizado até aqui um defeso anormalmente calmo em termos de compras e vendas. A excepção tem sido o Sporting de Braga, fazendo o papel de novo rico e afirmando-se disposto a mais altos voos. No FC Porto, há notícia de duas contratações e nenhuma venda, continuando o problema principal a ser, como de costume, o destino a dar à vintena de jogadores excedentários, comprados por atacado em momentos de perigosa euforia, e agora amarrados por contratos de longa duração e salários a que ninguém mais quer chegar. No Sporting, prossegue a política de prescindir dos anéis para salvar os dedos. Vende-se o património imobiliário e anuncia-se que aquisições só por empréstimo ou a custo zero. Alguns, saudosos da antiga fidalguia, protestam contra esta gestão, mas, na hora da verdade, nada de melhor têm para propor e por isso não convencem quem deviam. No Benfica, a situação é basicamente a mesma, mas ainda se pretende enganar o pagode com aquele tipo de declarações de que «os bons jogadores interessam sempre ao Benfica» ou que «o Benfica está atento ao mercado». Depois, repetem-se de Verão para Verão aquelas patéticas cenas, que são já uma imagem de marca do clube: primeiro, deixa-se noticiar que o Benfica está interessado em determinado jogador; a seguir e durante uma semana, vai-se ouvir o jogador dizer que «o Benfica é um sonho»; finalmente, o desfecho acaba por ser invariavelmente o mesmo — o jogador, já com um pé e todo o coração e cabeça no Benfica, aparece a assinar surpreendentemente por outro clube. E logo se retoma a novela com novo candidato. Entretanto, e trocando a realidade por miúdos, assim como no FC Porto neste defeso se desespera por vender McCarthy, no Benfica desespera-se por vender Laurent Robert e Simão Sabrosa (que, aliás, já deve estar vendido, não a um clube, mas a um empresário). Mas, tudo visto, são boas notícias: o juízo parece ter chegado à cidade.

3. Lendo por alto, é possível estabelecer vários momentos no chamado caso Gil Vicente e ver claro. Num primeiro momento, há uma lei absurda que obriga um jogador a fingir-se amador quando já é profissional, assim limitando, de facto, a sua liberdade de trabalho. Num segundo momento, o Gil Vicente, consciente da lei e da sua aplicação ao jogador Mateus, resolve contorná-la, apelando para a justiça comum e através da esperteza saloia de fingir que quem recorria era o jogador e não o clube. Ora, mal ou bem, existem regras, nacionais e internacionais, que vedam o acesso à justiça comum em matéria de direito desportivo. Ninguém é obrigado a aceitar tais regras nem a inscrever-se nas competições onde ela vigora: trata-se de competições particulares e fechadas, com regras próprias. Ou se aceita ou não se aceita, não se pode é aceitar para estar lá dentro e não aceitar quando não convém. A Comissão Disciplinar da Liga decidiu, pois, e com toda a lógica, despromover o Gil Vicente, por não ter acatado tal regra. Mas depois resolveram inventar nova reunião, como se a primeira não tivesse existido, trazer a votar quem não tinha votado e inventar um voto de qualidade do presidente para mudar tudo. Foi uma palhaçada: mais uma, digna de um órgão que tudo o que faz é uma palhaçada — jurídica, desportiva, ética.»

Miguel Sousa Tavares, in A Bola (13/06/2006)

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