MST: A lição de Madrid
«Florentino Pérez foi dos melhores presidentes que o Real Madrid alguma vez teve. Eleito em 2000 para a presidência do Real, reeleito em 2004, a sua gestão chegou agora ao fim, por decisão própria e após seis anos que mudaram o clube. Quando chegou, o Real estava falido, quando saiu agora, o RealMadrid é o clube mais rico do Mundo, segundo a consultora Deloitte and Touch, que o situa mesmo à frente do Manchester United. Para aí chegar, e fazendo jus à sua fama de grande gestor de empresas, Florentino Pérez começou por congeminar a operação imobiliária com terrenos circundantes ao Estádio de Chamartin, com isso invertendo logo a situação financeira do clube. Depois, e começando com o rapto de Figo ao Barcelona, lançou-se na célebre política de contratar um «galáctico por ano». De facto, contratou mais do que isso: dezassete em seis anos — mesmo assim muito menos que alguns clubes portugueses que chegam a contratar os mesmos dezassete... em cada ano, para depois lhes pagarem grande parte do ordenado para eles jogarem por empréstimo noutros clubes. Mas Florentino só comprou do bom e do melhor: Figo, Ronaldo, Zidane, Beckam, Owen, Robinho, etc. e mais etc., num total de 400 milhões de euros de investimentos só em jogadores: 65 milhões de compras por época (13milhões de contos!).
Esta política, que muitos anteviram como suicidária, teve o efeito oposto e esperado por Florentino: transformou o Real Madrid num clube milionário. O génio de Florentino Pérez foi conseguir desligar os resultados financeiros do clube dos resultados desportivos, das assistências e dos direitos televisivos. Se assim não fosse, aliás, o Real não poderia ter continuado a crescer e a sustentar os gastos com as suas vedetas: o estádio, por exemplo, já não pode levar mais ninguém e existem trinta mil pessoas em lista de espera para comprar um lugar cativo em Chamartin, o que levou a Direcção a exigir aos actuais titulares de lugares um número minímo de presenças no estádio todas as épocas, sob pena de perderem o seu lugar a favor dos que esperam. Em vez das receitas clássicas, Florentino apostou tudo no marketing e merchandising, partindo de princípio que havia cerca de 70 milhões de simpatizantes do Real em todo o Mundo e de que qualquer um deles estaria disposto a compraruma camisola do clube com o nome de um dos seus ídolos — ou duas ou três, se o Real conseguisse ter sempre, em cada equipa, dois outrês potenciais vencedores da Bola de Ouro. Hoje, as receitas do marketing, do merchandising e dos direitos de imagem representam mais de 65 por cento do total de receitas anuais. E o mercado não pára de crescer — sobretudo a Oriente, como o Manchester United já tinha descoberto, e o que leva a equipa, todos os inícios de época, a empreender aquelas desgastantes digressões pelo Extremo Oriente, que fazem o desespero dos treinadores,masque são uma montra vital para afirmar os interesses imperiais do Madrid naquele canto do Mundo.
Terceiro vector decisivo desta política foi a exploração dos direitos de imagem dos «galácticos» ao serviço do Real. Florentino não se limitou a contratá-los a peso de ouro, excedendo tudo aquilo a que o mercado estava habituado, pagando o preço de um avião a jacto por um investimento patrimonial tão frágil quanto o pode ser um jogador de futebol — sujeito a lesões, a baixas de forma, a inadaptação ao clube ou ao treinador ou a excessos pessoais que limitam o seu rendimento desportivo. Além das fortunas que pagou para os contratar, Florentino aceitou pagar também outras fortunas impensáveis para os manter ao serviço: 25.000 euros por dia é um ordenado corrente no Real Madrid, para as estrelas de topo. Em troca, o ex-presidente do Real obteve dos jogadores uma joint venture para a exploração e partilha conjunta com o clube da totalidade ou quase totalidade dos seus direitos de imagem.
As verdadeiramente grandes vedetas do futebol mundial, hoje em dia, não se limitam a explorar directamente campanhas publicitárias, que é um método que tende a saturar o público (veja-se o caso do seleccionador nacional, Luiz Felipe Scolari, que se desdobra em anúncios para tudo e mais alguma coisa, explorando até ao tutano a imagem de «patriota» português construída durante o Euro-2004). As grandes vedetas, como David Beckham, facturam bem mais ainda do que o próprio ordenado ou do que facturam em publicidade directa por calçarem determinado tipo de botas durante os jogos, vestirem determinado tipo de marcas depois dos jogos, andarem neste carro, passarem férias em tal sítio, jogarem golf no campo tal, fretarem um jacto privado de marca tal (que, óbviamente, não pagam, como tudo o resto), ou até por revelarem em entrevistas que ouvem a música de Fulano ou vêem os filmes de Beltrano. Isto, para não falar dos «direitos de presença» que cobram por aparecer em festas, clubes, restaurantes, discotecas, lançamentos de produtos, ou até por desfilarem em acontecimentos de moda. Hoje, os jogadores de futebol de topo são muito mais do que simples desportistas ou até profissionais exemplares. São verdadeiras fábricas ambulantes da própria imagem, que vendem tão bem ou melhor do que os talentos futebolísticos. Não admira, pois, que os vejamos constantemente a mudarem de penteado, a exibirem tatuagens novas ou a vestirem roupas de modelo único, criados exclusivamente para eles. E, nisto também, há os bons e os maus, os bons profissionais, que se sabem aconselhar e seguemuma linha «trandy», e os outros, os que não têm nem gosto nem conselheiros de gosto — e de que temos abundantes exemplos no futebol português da actualidade. Claro que os ingleses, os «galácticos» do Real ou do Barça e, obviamente, os italianos, fazem isto por gosto e profissionalmente. Eles sabem, ou ensinam-lhes, o que mexe com a moda, o que atrai as atenções, o que inspira imitadores. Ainda no Man. United, David Beckham percebeu o que era necessário fazer para ser uma estrela pop,mais do que uma simples estrela de futebol: quando entrava em campo, o que primeiro tinha de atrair as atenções dos adeptos era o corte de cabelo, a cor das botas, o tamanho dos calções, a nova tatuagem. Daí que, em desespero de causa, sir Alex Ferguson tenha tido o célebre desabafo de «não sei treinar um jogador de futebol que muda de penteado todas as semanas!».
Florentino Pérez também não sabia treinar David Beckham, mas sabia exactamente o que fazer com ele e como rentabilizar a sua imagem. Por isso, foi buscá-lo ao Manchester e começou imediatamente a facturar com a simples cerimónia de apresentação, com bilhetes vendidos para 20.000 sócios e transmissão em directo na televisão.
Porém, na estratégia de gestão brilhantemente congeminada por Florentino só havia um senão: era preciso que, para além dos fabulosos ordenados e lucros dos direitos de imagem, os «galácticos» não se esquecessem de que tinham de continuar a treinar no duro, a fazer sacrifícios pessoais e a realizar grandes jogos para justificarem o seu estatuto de vedetas planetárias. E eles esqueceram-se. Aos olhos dos sócios e adeptos de sempre do Real, eles transformaram-se numa colecção de simples mercenários, mais procupados com o dinheiro, a fama e o exibicionismo do que com as suas obrigações contratuais perante o clube e os seus sócios. No fundo, o que os sócios recordaram a Florentino é que o essencial de um clube não são os jogadores, por mais fabulosos que sejam ou por mais vedetas que se julguem: são os adeptos, os que vão ao estádio e seguem a equipa pelos vários cantos do Mundo, os que pagam as quotas e os lugares cativos, os cachecóis e camisolas, os que, ao contrário das vedetas, serão do clube até morrer e comele só gastam dinheiro. O toque a finados no Real foi a derrota em Saragoça por 0-4, para a Taça do Rei, e o comentário de um suplente vindo da «cantera», que, depois de ter obtido um golo para o Real, comentou que «parecia que tinha sido golo do adversário», de tal forma os seus companheiros ficaram indiferentes, sem sequer o cumprimentarem. Florentino Pérez percebeu a mensagem e por isso se demitiu. O que seria de desejar é que a lição da sua queda fosse devidamente meditada por presidentes, agentes e jogadores. Não se esqueçam: nenhum clube sobrevive muito tempo se os donos da bola deixarem de ser os adeptos.»