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terça-feira, maio 02, 2006

MST: Para além da espuma das coisas

«1. Imagine, leitor, o seguinte cenário: uma empresa constitui-se tendo como grande objectivo concorrer a um concurso internacional de prestígio mundial — chamemos-lhe a Empresa. O capital necessário é reunido por subscrição pública, entre pessoas com muito, com algum ou com pouco dinheiro, que acreditam no projecto — chamemos-lhes os Accionistas. Para o liderar, a Empresa contrata um dos profissionais com mais nome no mercado internacional, a quem se dispõe a pagar um ordenado milionário — chamemos-lhe o Profissional. O Profissional reune então uma equipa de quadros altamente qualificados — chamemos-lhe a Equipa — e, durante dois anos, eles preparam-se, com todas as condições, todas as mordomias e todo o crédito, para a tarefa que a Empresa e os Accionistas lhes confiaram — chamemos-lhe o Evento. E, então, dois meses antes do evento, o Profissional aceita reunir-se em segredo com uma empresa concorrente daquela que lhe paga, com o propósito de contratar os seus serviços após o Evento. Ou seja, quando toda a gente, a começar pela Empresa que passou dois anos a pagar-lhe um ordenado de luxo, o imagina apenas concentrado no objectivo definido e a mobilizar a sua Equipa para tal, ele está a negociar um novo contrato, acautelando o futuro. Agora, leitor, ponha os nomes às coisas: onde está Empresa, leia Federação Portuguesa de Futebol; onde está Accionistas, leia pagadores de impostos; onde está Evento, leia Mundial de Futebol; onde está Equipa, leia Selecção Nacional; e onde está Profissional, leia Luiz Filipe Scolari. Foi isso que aconteceu: o nosso Seleccionador Nacional, o mesmo que em devida altura vai fazer um apelo ao patriotismo dos portugueses e às bandeiras desfraldadas nas varandas e nos carros, aceitou reunir-se, dois meses antes do Mundial, com representantes da Federação de Futebol Inglesa para discutir as possibilidades de trocar de bandeira, logo após o Mundial. Sim, eu sei: vão-me dizer que ele é um profissional e que o futebol é assim, nos tempos que correm. Mas, então, por favor, não me venham com patriotismos, e «a Selecção de todos nós», e o «treinador de todos nós» e outras bugigangas que tal. Eu pago, eles que joguem, e ponto final. Parece, também, que o «nosso» seleccionador não ficou muito entusiasmado com o convite da Federação Inglesa: o ordenado não era assim tão superior ao que lhe pagamos, o clima é pior, a segurança não é comparável, a família gosta mais de Lisboa e a imprensa aqui é bem mais simpática e compreensiva. Acho uma escolha muito legítima e sábia. Mas, por favor, não a venham depois apresentar como amor a Portugal ou «compromisso de cavalheiros». As coisas são o que são.

2. Na semana em que rebentou o «Apito Dourado» (já lá vão mais de dois anos), por entre o entusiasmo geral de quem achava que o futebol português e os seus subterrâneos iriam levar um abanão de alto a baixo, eu atrevi-me a escrever no «Público» um artigo intitulado «Apito Encravado». Nele previ que, apesar de todo aquele espalhafato e show off justiceiro, a montanha acabaria por parir um rato — já que o único resultado que interessaria a dois terços do país opinante era a captura de Pinto da Costa, e essa, logo ali dava para perceber que não tinha o menor sustentáculo para ir avante. É verdade que, com o «Apito Dourado», a juíza de instrução de Gondomar inaugurou uma figura nova no direito processual português: em vez da prisão após interrogatório do suspeito, passou a ver-se a prisão prévia para interrogatório. Mas, ao contrário de todos os outros envolvidos, Valentim Loureiro incluído, Pinto da Costa, que se encontrava ausente no estrangeiro, muito legítima e inteligentemente, frustrou os desejos da populaça e apresentou-se apenas quando tinha a certeza de que iria ser ouvido, assim evitando passar dois dias de cárcere público à espera que a Meritíssima o pudesse interrogar. Esse foi o primeiro tiro de pólvora seca do «Apito Dourado». O segundo, foi a dificuldade dos acusadores conseguirem demonstrar que o «JP» das escutas telefónicas (que reclamava umas «meninas» para o distraírem») era mesmo o Jacinto Paixão, árbitro nomeado para o FC Porto-Estrela da Amadora de 2004. O terceiro, foi a dificuldade de os acusadores tornarem verosímil aquilo que em direito penal se chama o «nexo de causalidade»: mesmo que «JP» fosse Jacinto Paixão, e que o presidente do FC Porto tivesse acedido ao seu pedido de umas «meninas», como se conseguiria convencer alguém de que a contrapartida disso teria sido uma arbitragem favorável do «JP», num jogo em que a então equipa de José Mourinho — praticamente já com o título na mão e a dois meses de se sagrar campeã da Europa — tinha necessidade de corromper o árbitro para vencer um jogo em casa contra o último da classificação? Eu escrevi isto há dois anos: o único objectivo mediático do «Apito Dourado» era conseguir encravar Pinto da Costa. Mas, os «factos» que existiam para tal eram simplesmente patéticos e ridículos. Porém, a pressão da «inteligência» lisboeta era muita e o processo prosseguiu. Durante dois anos, esbanjou-se alegremente o dinheiro dos contribuintes a tentar transformar num caso judicial aquilo que não passava de um processo de intenções. Mobilizaram-se funcionários, investigadores, oficiais de diligências, chamaram-se «peritos» ex-árbitros para eles declararem (num caso até ao contrário do que ele havia escrito na altura) que um dos golos do FC Porto nesse jogo tinha sido em «offside», e, no final, já com todos os prazos de instrução ultrapassados, juntou-se uma task-force do Ministério Público, para conseguir deduzir alguma acusação. E, finalmente, quando alguma coisa precisava de ser apresentada, mandaram-se extrair certidões para outras comarcas, para que outros continuassem a perseguir a lebre que eles julgavam ter levantado mas que não tinham conseguido caçar. E, quando chegou ao tribunal do Porto a certidão para continuar a investigar Pinto da Costa, o delegado do Ministério Público de lá arrumou com a investigação em duas penadas, fazendo a pergunta fatal: alguém me consegue explicar a necessidade do FC Porto subornar o árbitro daquele jogo contra o Estrela da Amadora? Assim morreu, para todos os efeitos úteis, o «Apito Dourado». À boleia do cadáver, ressuscitou também o major Valentim Loureiro, aliado conjuntural do presidente do Benfica na gestão do «sistema». Todavia, há aqui uma diferença: para quem leu os extractos das conversas telefónicas entre o major e o presidente do Gondomar, o mínimo de bom senso exigiria que ele ficasse calado e muito bem caladinho e que apresentasse, já ontem, a sua demissão da presidência da Liga de Clubes. Feito o balanço, o mais grave do «Apito Dourado» não é a montanha que pariu o rato, nem o dinheiro inutilmente gasto a investigar pechisbeque, nem sequer — por mais grave que tenha sido — mais uma cena eloquente de falta de respeito pelos direitos dos arguidos em processo penal. O mais grave de tudo é a demonstração do total falhanço de uma justiça inepta e irresponsável, que actua para os jornais e não para os tribunais. Se houvesse vergonha, que não há, o «Apito Dourado», deveria, de facto, fazer rolar cabeças. Outras. Quanto àqueles que, durante estes dois anos, tantas esperanças puseram no «golpe de secretaria», deixo-lhes um conselho para o futuro: aprendam a destrinçar o espalhafato do facto, aprendam a ler os sinais para além da espuma das coisas.

3. Esta semana o Sporting está de parabéns: venceu em Vila do Conde, ficando a um empate da entrada directa na Liga dos Campeões — o que, prestígio e estatística passageiros à parte, vale hoje o mesmo do que ser campeão. E, de caminho, derrotou e por números eloquentes, a demagogia interna.»

Miguel Sousa Tavares, in A Bola (02/05/2006)

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