MST: Dúvidas, certezas e verdades oficiais
«1. Desde há muito tempo que se aprende no jornalismo a técnica para transformar um acontecimento controverso numa verdade acima de qualquer controvérsia. É fácil: distorce-se o facto, de modo a que as dúvidas suscitadas comecem por parecer sem importância, antes de desaparecerem de vez — em lugar de um facto duvidoso passa-se a ter uma certeza. Depois, a certeza é repetida como tal, tantas vezes quantas as necessárias para que se transforme em verdade — não numa verdade inquestionável, mas ao menos numa verdade que já ninguém se dá ao trabalho de questionar. É assim que, há mais de um ano, os jornalistas benfiquistas conseguiram estabelecer a «verdade» de que a bola rematada por Petit entrou na baliza de Baía, no jogo da Luz do ano passado. Ora, a verdadeira «verdade» é que, tal como aqui o escrevi na altura, a bola deu, de facto, a impressão de ter entrado na baliza, mas nem o árbitro ou o juiz-de-linha o poderiam ter visto de onde estavam, nem, até hoje, apareceu uma única imagem ou outra prova que o pudesse confirmar com toda a certeza. E, na dúvida sobre se foi golo ou não, o que deve o árbitro fazer? Tanto quanto sei, as regras da FIFA mandam que deixe seguir o jogo. Peguemos agora no exemplo oposto. Eu não posso também jurar que a bola cruzada pelo jogador do Rio Ave e que acabaria anteontem no fundo da baliza do Benfica (deixando-o em péssima situação, não apenas no campeonato mas no acesso à Liga dos Campeões) não estava realmente completamente fora — como mandam as regras, para que pudesse ser assinalada como tal. Mas fiquei com a impressão nítida de que, de forma alguma, a bola esteve completamente fora. O que mandam as regras? Que, na dúvida, se deixe seguir a jogada. O que é estranho aqui, portanto, é que o juiz-de-linha não tenha tido dúvida alguma. É que o único ângulo em que ele poderia ter essa certeza era estando colocado exactamente no prolongamento da linha final. Porém, acontece que, decorrendo a jogada do lado oposto, se ele estivesse no prolongamento da linha final, teria, entre ele e a bola, dois postes, dois defesas do Benfica e o guarda-redes Moretto. Ou seja: não pode ter visto nada. De onde lhe veio essa certeza ou esse instinto de levantar a bandeirola para anular um golo que a todos pareceu limpo (excepto ao Nuno Gomes, que protesta sempre com tudo...) é um mistério que, se acontecido em benefício de outras cores, daria direito a um rol sem fim de suspeitas e declarações incendiárias dos senhores do costume. Esta semana os jornalistas benfiquistas estabeleceram como verdade que o Benfica foi prejudicado em dois jogos consecutivos, contra a Naval e contra o Guimarães. Transformaram dúvidas em certezas, desejos ou opiniões próprias em verdades oficiais. Contra a Naval queixam-se de um penalty por derrube a Léo. Mas as imagens mostram que o jogador da Naval primeiro toca na bola e desvia-a e só depois é que a sua perna estendida derruba Léo. O que mandam as regras? Contra o Vitória de Guimarães, queixam-se de que o golo do Vitória foi precedido de um passe feito com braço. Mas, dos cinco jogadores do Benfica à roda do lance, só o guarda-redes e Nuno Gomes protestaram (e este protesta sempre contra tudo). E o mais que as imagens, repetidas infindavelmente, mostram é que o jogador do Guimarães salta para dar com o joelho na bola e que esta, talvez, talvez, lhe tenha batido também algures na mão, no braço, no cotovelo, no ombro (há alguém que possa dizer ao certo?). E assim, estabelecendo estas «verdades», preparou-se o terreno para Vila do Conde. A única certeza que o juiz-de-linha teve naquele lance é que de forma alguma poderia correr o risco de validar um golo ao Rio Ave que depois pudesse ser contestado pelo povo benfiquista. A mesma certeza que teve o árbitro quando conseguiu não ver nem jogo perigoso nem pé em riste, quando o Mantorras obriga o adversário a baixar a cabeça para não ser pontapeado e mesmo assim ainda leva com a bota dele na cara, após o remate milagroso do angolano. Claro que a justiça também é sempre importante. Não vi o jogo contra o Guimarães, mas, nos outros dois, é incontestável que o Benfica fez o suficiente para merecer ganhar ambos, ou os adversários não fizeram nada para justificar outra coisa que não a derrota. O problema está em que foi por erros próprios, e não por culpa do árbitro, que o Benfica empatou com a Naval; e foi por culpa exclusiva do trio de arbitragem que o Benfica ganhou ao Rio Ave.
2. O FC Porto-Sporting de amanhã, para a Taça, é um jogo interessante por diversos motivos e tem obrigação de não trair esse interesse. O FC Porto de Adriaanse joga muito melhor futebol que o Sporting de Paulo Bento, mas, ao contrário deste, tem-se mostrado incapaz de vencer jogos decisivos. Tendo o dobro do orçamento do Sporting, é fatal que o FC Porto tenha também muito melhor equipa e muito mais e melhores soluções. Uma equipa que se pode dar ao luxo de deixar de fora, como sucedeu no último jogo, jogadores como Helton, César Peixoto, Ricardo Costa, Ibson, Diego, Jorginho, Alan, Ivanildo, Hugo Almeida ou Lisandro, todos pagos a bom dinheiro, tem obrigação estrita de ganhar amanhã e ganhar depois em Alvalade. Mas este FC Porto é uma caixinha de surpresas, para o bem e para o mal: perde quando está confiante, ganha quando está em crise anunciada, perde jogos que estavam ganhos, ataca quando não precisa, defende quando não deve. Já o Sporting de Paulo Bento é o contrário: é previsível e seguro até à chatice profunda. Joga para ganhar e nada mais lhe interessa, como de novo se viu em Leiria. Mas cumpre os três requisitos, os três C tão caros aos treinadores portugueses: coeso, coerente e consistente — como eles gostam de dizer, e seja isso o que for. Dificilmente teremos um jogo aberto, mas vamos ter um jogo onde a vitória só interessa a ambos e vai ser interessante ver como é que cada um justifica as suas pretensões.
3. Uma coisa é forçoso reconhecer, para melhor, no FC Porto de Co Adriaanse: é a equipa mais disciplinada do campeonato. Houve agora, no Funchal, a injustíssima expulsão do Pepe, por duas faltas que não cometeu (mas o árbitro era Lucílio Baptista...) e, à parte isso, creio que é a equipa com menos cartões do campeonato, ou deve andar lá perto. Desapareceram os cotovelos, verdadeiros ou inventados, do McCarthy (e, com eles, misteriosamente desapareceram também todos os cotovelos e todos os «sumaríssimos » do nosso futebol...) e a equipa foge das faltas inúteis e do futebol violento: contra o Paços de Ferreira julgo que o FC Porto terá estabelecido um recorde na Super Liga — oito faltas cometidas em todo o jogo! Ninguém protesta com o árbitro, decida ele o que quiser (golo mal anulado contra o Nacional, com 0-0; penalty inexistente no último minuto contra o Braga, a custar dois pontos; penalty inexistente e amarelo absurdo ao Pepe contra o Marítimo; penalty não assinalado, contra o Paços, etc., tudo sem mais do que um levantar de braços). E o exemplo vem de cima: Co Adriaanse deve ser o único treinador da SuperLiga que até hoje nunca se queixou de uma decisão do árbitro nem justificou um mau resultado com a arbitragem; Reinaldo Teles jamais abriu a boca desde o início do campeonato; e McCarthy até teve o gesto impensável de aconselhar o árbitro a rever a sua decisão de expulsar um adversário e marcar um penalty a favor do Porto, que não tinha existido. São coisas de que ninguém fala e é pena.»